Os Direitos Humanos em perspectiva no Brasil - FMP - Fundação Escola Superior do Ministério Público

Os Direitos Humanos em perspectiva no Brasil: breve análise dos casos “Alyne da Silva Pimentel Teixeira vs Brasil” e “Maria da Penha Fernandes vs Brasil”.

Quando se fala em Direitos Humanos, importante destacar que tais direitos reconhecidos como universais têm início “em lugares pequenos, perto de casa – tão perto e tão pequenos que não podem ser vistos em nenhum mapa do mundo […] a menos que esses direitos tenham significado aí, eles têm pouco significado em qualquer lugar. Sem uma ação cidadã combinada para mantê-los perto de casa, procuraremos em vão pelo progresso no mundo mais amplo” (Eleanor Roosevelt).

O dia 10 de dezembro é o marco comemorativo do aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que completa os seus 73 anos. Em que pese, a Declaração não possuir caráter vinculativo/obrigatório para os Estados, ela foi assinada pelos 193 países membros das Nações Unidas. Desse modo, se trata de direitos aceitos e reconhecidos internacionalmente, incluindo direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais, além e estabelecer mecanismos para promover e proteger esses direitos e auxiliar os Estados no cumprimento de suas responsabilidades.

Sendo assim, os Direitos Humanos, conforme Dalmo Dallari (1998), são uma forma sintética de referir ao que chamamos de direitos fundamentais da pessoa humana, direitos estes, que se mostram necessários para satisfazer as necessidades humanas fundamentais. Os Direitos Humanos na esfera internacional são espécies de normas peremptórias (cogentes), ou seja, jus cogens, reconhecidamente, por todos os personagens internacionais, como aquelas que não podem ser violadas.

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Para além da comemoração a data alusiva deve servir como um momento de reflexão, de todos, em especial pela sociedade internacional, composta pelos Estados, Organizações Internacionais, Sociedade Civil Organizada, entre outros. Para além da comemoração, a data deve ser vista como um momento de reafirmar a relevância dos Direitos Humanos, mobilizar as vontades políticas e os recursos necessários para enfrentar os problemas globais, a fim de celebrar e reforçar as conquistas da humanidade. Enfim, cabe a cada um de nós questionarmos qual o mundo que queremos viver, sobretudo diante do contexto mundial de crise sanitária mundial, climática, ambiental e humanitária, que emergiu a urgência de uma solidariedade a nível global.

Análise dos casos de violação de direitos humanos pelo Estado brasileiro.

Feitas as considerações iniciais acerca da relevância de comemorar o Dia Internacional dos Direitos Humanos, passa-se a tecer alguns apontamentos sobre a construção de tais direitos, em âmbito global e regional, e posteriormente a análise dos casos concretos em face do Estado brasileiro.

 O sistema global de proteção dos Direitos Humanos das Nações Unidas, caracteriza-se por conter normas de alcance geral que atingem todos os indivíduos, como os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e o de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, e normas de alcance especial, como é o caso daquelas que atingem mulheres, crianças, refugiados, entre outros grupos específicos. Nesse contexto, o Brasil ratificou alguns dos instrumentos criados pela ONU, de forma que se vê obrigado a enviar relatórios para os comitês sobre a situação dos direitos humanos no país.

 Em relação aos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, são reconhecidos enquanto promoção da dignidade humana, que reúnem determinados Estados, localizados em continentes, cujo objeto é reforçar a estrutura internacional para proteção dos direitos humanos (PORTELA, 2009). Dentre os sistemas regionais, destaca-se o Sistema Africano, a Corte Europeia de Direitos Humanos e o Sistema Interamericano (SIDH), no qual integra o Brasil. 

O SIDH iniciou-se formalmente com a aprovação da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem na Nona Conferência Internacional Americana realizada em Bogotá em 1948, onde também foi adotada a própria Carta da OEA, que afirma os “direitos fundamentais da pessoa humana” como um dos princípios fundadores da Organização (CIDH, 2021). A SIDH conta com dois órgãos na sua composição: a Comissão Interamericana, órgão principal e autônomo da OEA, sediada em Washington, D.C., sendo composta pelo Sistema de Petição Individual; pelo monitoramento da situação dos direitos humanos nos Estados Membros, e a atenção a linhas temáticas prioritárias. Além de contar com um segundo órgão que é a Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada na Costa Rica, é uma instituição judiciária autônoma cujo objetivo é a aplicação e a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

A partir da distinção dos níveis de proteção de Direitos Humanos, quais sejam: o global e o regional, será possível compreender as perspectivas e implicações em relação ao Estado brasileiro diante dos casos Alyne da Silva Pimentel Teixeira vs Brasil e Maria da Penha Fernandes vs Brasil, os quais denunciaram o Estado brasileiro. 

Em relação ao primeiro caso, o Brasil foi denunciado ao Sistema Global (ONU), pela violação de dispositivos da Convenção sobre Eliminação das Piores Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), já no tocante ao segundo caso, o Brasil foi denunciado ao Sistema Regional – Interamericano, sendo o órgão responsável por recebê-la a Comissão Interamericana, pela violação das Convenções sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979); Convenção Interamericana para Punir, Prevenir e Erradicar a Violência contra a mulher, também conhecida como “Convenção de Belém do Pará” (1994), serviram de fundamento principal para as recomendações feitas ao Brasil pela Comissão.

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O caso Alyne da Silva Pimentel Teixeira v. Brasil remonta a importância para o reconhecimento dos direitos da mulher a uma maternidade segura e ao acesso a serviços básicos de saúde de qualidade sem discriminação. De forma breve, ele se refere ao fato ocorrido em 11 de novembro de 2002, quando Alyne da Silva Pimentel Teixeira – uma mulher brasileira, de 28 anos, negra, pobre e grávida – estava no sexto mês de gestação e buscou assistência na rede pública em Belford Roxo, no estado do Rio de Janeiro, apresentando náuseas e fortes dores abdominais. Após breve atendimento, a jovem recebeu analgésicos e foi liberada para voltar a sua casa, mesmo com sintomas de gravidez de alto risco. 

Contudo, estes sintomas se agravaram nos dois dias seguintes, de forma que ela retornou à clínica já sem os batimentos cardíacos fetais e, por isso, seis horas depois, seu parto foi induzido, resultando em um feto natimorto. Entretanto, a extração da placenta, que deveria ocorrer imediatamente após o parto, ocorreu catorze horas mais tarde, fazendo com que o estado de saúde de Alyne se deteriorasse e fosse preciso transferi-la a um serviço de saúde público mais especializado, depois de mais de oito horas. Em consequência disso, Alyne morreu depois de mais de 21 horas sem receber assistência médica (CEDAW, 2011).

Após o episódio, a família de Alyne ajuizou, em 30/11/2002, ação cível na Justiça Estadual, de número 2003.001.015774-2, com vistas a obter reparação moral e material contra o Estado do Rio de Janeiro. Após longos anos de discussão no âmbito interno do judiciário brasileiro e sem lograr êxito a ação apresentada, as ONG’s Center for Reproductive Rights e Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos (Advocacy), submeteram comunicação/denúncia ao Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW), em novembro de 2007, em representação à mãe da vítima e sua filha. Após exaustiva análise realizada pelo CEDAW acerca do caso, e das comunicações apresentadas pelo Estado brasileiro, o Comitê observou que a falta de serviços de saúde materna adequados não satisfez as necessidades de saúde e os interesses específicos das mulheres, o que constituiu violação ao direito ao acesso à justiça (art. 2), à saúde sem discriminação (art. 12), e à vida (art. 1), presentes na citada Convenção. O Comitê reconheceu que o status social marginalizado, de mulher e de afrodescendente de Alyne colocou-a em um segmento vulnerável da sociedade, em relação ao acesso a serviços de saúde de emergência. 

Portanto, a partir do caso Alyne vs. Brasil, foi reconhecido expressamente que os Estados têm uma obrigação internacional para reduzir a mortalidade materna. Assim, o Cedaw determinou que o Estado brasileiro indenizasse a família de Alyne, reconhecendo os danos sofridos, e apresentou recomendações a serem adotadas no serviço público de saúde, como o acesso à proteção jurídica adequada e efetiva em casos de violação dos direitos à saúde reprodutiva das mulheres (CEDAW, 2011).

Após análise de caso junto ao Sistema Global, reporta-se a atenção ao segundo caso, o qual versa sobre Maria da Penha vs Brasil, traçando sua relação com a proteção dos Direitos Humanos no âmbito do Sistema de Proteção Regional, uma vez que o caso referido foi o primeiro caso de violência doméstica avaliado pelo SIDH. Quando os direitos de um indivíduo não são protegidos no âmbito doméstico/interno, o Sistema Internacional entra em ação, sendo oferecida no caso em apreço uma proteção pelo Sistema Regional. 

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O caso Maria da Penha corresponde ao primeiro caso de violência doméstica tratado pelo Sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos. No dia 04 de abril de 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no Relatório nº 54/01, referente ao Caso 12.051 – Maria da Penha Fernandes x Brasil, concluiu que “[…] a República Federativa do Brasil é responsável da violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, assegurados pelos artigos 8 e 25 da Convenção Americana em concordância com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos, prevista no artigo 1 do referido instrumento pela dilação injustificada e tramitação negligente deste caso de violência doméstica no Brasil” (CIDH, 2001).

O Relatório, como é de conhecimento público culminou na criação da Lei 11.340/06, que foi uma homenagem à Maria da Penha Fernandes, protagonista na luta pela proteção aos direitos da mulher. 

Por fim, a pressão internacional feita através de recomendações da CIDH ao Brasil foi a principal causa para o advento da Lei “Maria da Penha”, editada em 7 de agosto de 2006, contra a violência doméstica e familiar. Maria da Penha pôde recorrer ao direito internacional (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) em última instância, buscando alternativas jurídicas para seu caso.

É absolutamente possível perceber, com auxílio dos relatórios, que o surgimento dos Sistemas Regionais de Proteção foi, sem dúvidas, o principal encarregado no que diz respeito à proteção específica dos direitos das mulheres vítimas de violência doméstica e violência familiar no Brasil (e mesmo em outros Estados). A recomendação dada pela Comissão se encontra inserida em um contexto de internacionalização e consolidação da tutela dos direitos humanos, com a criação de sistemas de proteção a tais direitos – como o referido Sistema Interamericano.

Referências:
  • CEDAW. Alyne da Silva Pimentel vs. Brazil. Comunicação nº 17/2008, § 21, Documento da ONU: CEDAW/C/49/D/17/2008, 2011.
  • CIDH. Relatório Anual 2000. Relatório n° 54/01 do Caso 12.015, Maria da Penha Maia Fernandes, 2001. Comissão Interamericana de Direitos Humanos: Organização dos Estados Americanos. Acesso em: 24 nov 2021. Disponível em: https://cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em 2 dez. 2021.
  • CIDH. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: https://www.oas.org/pt/CIDH/jsForm/?File=/pt/cidh/mandato/que.asp. Acesso em: 02 dez. 2021.
  • DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. Imprenta: São Paulo, Moderna, 1998. 80 p.
  • PORTELA. Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado: incluindo noções de direitos humanos e direito comunitário. Imprenta: Salvador, JusPODIVM, 2019.

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