Qual o lugar do Haiti na geopolítica latino-americana e nas relações internacionais? - FMP - Fundação Escola Superior do Ministério Público

Casas após o terremoto deste sábado, 14/8. Foto: REUTERS/Ralph Tedy Erol

 

“Vê-lo qualquer enciclopédia. Pergunte o que foi o primeiro país livre da América. Sempre receber a mesma resposta: os Estados Unidos. Mas os Estados Unidos declararam sua independência quando eles eram uma nação com 650 mil escravos, os escravos continuaram por um século, e em sua primeira Constituição estabeleceu um equivalente negro para três quintos de uma pessoa.
E se qualquer pergunta enciclopédia que foi o primeiro país a abolir a escravidão, sempre terá a mesma resposta: a Inglaterra. Mas o primeiro país a abolir a escravidão não era a Inglaterra, mas Haiti, que ainda está expiando o pecado de sua dignidade. Os escravos negros do Haiti haviam derrotado o exército glorioso de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou a humilhação. Haiti pagou à França, durante um século e meio, uma enorme indenização por ser culpado de liberdade, mas, mesmo que alcançado. Que insolência negra ainda dói senhores brancos do mundo.”
(Galeano, Eduardo, Haiti, país ocupado)

 

Partindo dessa indagação será possível entender o contexto de um país que possui 68% de seu orçamento nacional constituído por sanções e subvenções exteriores em nome da restauração da democracia. Trata-se de um país com mais de 200 anos de independência, mas com a soberania tolhida, além de ser o único país latino-americano alvo de sanções pelo Conselho de Segurança da ONU (CSNU).

Uma das sanções impostas ao país ocorreu de 1991 a 1994, momento do golpe de Estado que destituiu o presidente democraticamente eleito no país, fez com que a OEA levasse ao CSNU a reclamação de violação à democracia e a necessidade de intervenção no país. O Haiti sofreu sanção que colaborou para a sua desestabilização, sendo agravada mais tarde pela intervenção humanitária.

O Haiti sofre intervenção internacional quando a ONU envia suas tropas para o país, em 1994. As razões estão ligadas à necessidade da manutenção da paz, ao restabelecimento de Aristide ao poder, à modernização das forças armadas e à criação da primeira polícia civil haitiana. No ano de 2000, Aristide se elege e renuncia logo em seguida. As suspeitas de fraude no pleito eleitoral levaram os militares americanos a retirá-lo à força do país. No período subsequente toma o poder o presidente do Supremo Tribunal haitiano, assim como o surgimento da Missão de paz. De 2004 a 2017, militares brasileiros estiveram no país, numa missão de paz da ONU liderada pelo Brasil (Minustah). O objetivo era restaurar a ordem no Haiti, após um período de insurgência e a deposição do então presidente Jean-Bertrand Aristide.

A intervenção Ocidental na crise haitiana se assenta “na mistura do paternalismo, de messianismo e de ingenuidade que incita a favorecer as ideias de intervenção no que elas têm de cínico, fazendo crer que tudo o que é ocidental é necessariamente bom para o mundo” (BADIE, 2011, p. 140).

Ao retomar o questionamento inicial acerca do lugar ocupado pelo Haiti no contexto latino-americano, vale destacar que, juridicamente, é um Estado formalmente soberano, com fronteiras delimitadas e reconhecidas, com seus nacionais, com o reconhecimento e afirmação do princípio das relações internacionais da autodeterminação dos povos, princípio conquistado bravamente pelos revolucionários haitianos, assim como a defesa da igualdade da raça humana. No entanto, o que de fato se vislumbra é um Haiti com uma soberania reconhecida como ficção jurídica, na medida em que possui um poder de polícia limitado e uma restrita capacidade de se autoadministrar.

Para além da crise política, econômica e social, o país está imerso em uma profunda crise ambiental, vindo ao encontro um panorama de catástrofes naturais, como o terremoto que assolou o local em 2010. O evento foi considerado um dos maiores desastres urbanos em 200 anos e gerou mais de 300 mil vítimas fatais, além de aproximadamente um milhão e meio de pessoas desabrigadas, o que intensificou a migração. Ao longo de sua trajetória histórica socioambiental e econômica, o país tem sido acometido por desastres naturais. Encontra-se localizado na segunda maior ilha do Caribe, situado a 77 km ao sudeste de Cuba e compreende várias ilhas que cercam o território principal. Ocupa o terço ocidental da ilha compartilhada com a República Dominicana, com 1.530 km de linha de costa, e sua terra é montanhosa entre o Oceano Atlântico no Norte e no Mar do Caribe no Sul. Localiza-se em uma placa caribenha que o torna um local propício à ocorrência de terremotos.

O panorama atual no país remonta um contexto desolador, na medida em que assolados pela crise pandêmica global, deslocamentos forçados dos nacionais para outros países, o assassinato do presidente Jovenel Moise Fairwell, no último 07 de julho em sua residência. Além, de um crescente cenário composto por gangues armadas haitianas, que contam com financiamento, poder territorial e capacidade operacional.

São conhecidas como “G9 an fanmi e alye” (o Grupo dos 9 em família e aliança), em referência aos seus nove principais líderes. Por fim, no último sábado, 14 de agosto, mais um terremoto de magnitude 7,2 abalou o sul do Haiti e deixou pelo menos 724 mortos e mais de 2,8 mil feridos, além de desaparecidos. A trajetória histórica do Haiti e de seu povo, desde o período colonial, passando pela independência de Estado-nação, em 1804, até a contemporaneidade, marcada por conflitos raciais e sociais, instabilidade política, intervenções externas, regimes ditatoriais, corrupção, desastres e catástrofes ambientais, remontam elementos chaves para a compreensão da incapacidade de tornar-se um país soberano e democrático.

Por Joseane Schuck Pinto

Referências:

BADIE, Bertrand. La Diplomatie de La connivance: les derives oligarchiques Du système international. La Découverte. Paris, 2011.

Embaixada da República do Haiti. Disponível em: https://www.haiti.org/haiti-at-a-glance/. Acesso em agosto de 2021.

PINTO, Joseane M. Schuck. Os deslocamentos forçados de haitianos e suas implicações; desafio global na sociedade de risco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

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